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Saturno, o avô celeste

Foto do escritor: Mariana CamposMariana Campos

INGRESSAR NO TEMPO


A mãe do meu pai, minha avó Zely, é uma escorpiana que se orgulha muitíssimo de seu nome estranho. Ela nasceu em Entre Folhas, na zona da mata mineira, pelas mãos da parteira Madrinha Maria da Luz, uma das figuras mais míticas das quais já ouvi história. Conta a minha avó que a Madrinha, ao cruzar com alguma grávida pela cidade, anunciava o sexo da criança: “invém menino”. Nunca errava. A Madrinha também sabia o dia e a hora do nascimento de cada uma delas, e não era preciso que ninguém a solicitasse no momento esperado. Ela então se arrastava em direção ao seu serviço, sempre trajada de grandes tecidos feito túnicas que cobriam o corpo por completo, deixando visíveis apenas seus pés descalços e suas mãos, além de seu candeeiro aceso, abrindo os caminhos com a sua foice de luz.

Não é somente pela anedota que relembro aqui a Madrinha Maria da Luz. Diariamente, como astróloga, estou diante da horas das luzes, quando me remeto aos nascimentos, para levantar o mapa natal de quem me procura para tais serviços interpretativos. Nascer é ingressar no tempo. É no ato do nascimento que as luzes são distribuídas. Para a Astrologia, é da observação dos luminares e planetas, de suas condições através dos signos e regiões que ocupam no mapa, que se qualifica o tempo em que se nasce e os ciclos da vida, nos quais está inclusa a velhice.

De forma muito carinhosa e provocativa, é comum que eu cumprimente a minha avó Zely dizendo: “e aí, véia?”. E sempre respondendo à brincadeira sem deixar de franzir um incômodo na testa, ela responde: “véio é o seu passado”, como se me obrigasse a morder o rabo da cobra do tempo, e escorpianamente sábia, me desse de beber de meu próprio veneno. Bem, soa sensato que meu passado seja velho, mas se tratando de previsões, sempre me instiga como o futuro também poderia estar contido em data e hora antigas.

Quanto mais me aplico à Astrologia, mais se expandem os seus mistérios. O principal objeto de seus estudos, o tempo, figura entre os mais requisitados temas de físicos, filósofos, poetas. Não parece estranho que quem se interesse por investigar o tempo, se disponha quase sempre a alguma mística. Fica mais simples, dessa forma, pedir a licença e a benção aos meus mais velhos, avôs e avós, pais e mães da luzes de meus pais, para assim, sentir-me amparada para falar sobre tempo, e seu duplo astrológico, Saturno.


Rubens

O MITO DE SATURNO


Mas antes de tratar as questões astrológicas de Saturno e de seus retornos - marcos importantes de nossa caminhada através do tempo -, falemos brevemente das fundações mitológicas de seu nome.

Saturno é, por excelência, o senhor rítmico de todos os ritos, sendo o nascer e morrer os mais enigmáticos entre todos eles. Conhecer a narrativa mítica respectiva a Saturno, reconhecido também na imagem grega de Crono, auxilia na compreensão de seu desdobramento simbólico referente ao astro para a Astrologia. Suas representações figuram um aspecto senil, e em muitas, ele porta uma foice, como em “Saturno devorando um filho” de Rubens. Antes, no entanto, desse episódio que o consagra como um pai ameaçador, há um embate com seu próprio pai, Urano. Esse embate apoia a noção de Saturno como um limitador da vida, quando, contra a procriação descontrolada e insustentável de seu pai, munido de sua foice, ele o castra. É assim que Crono/Saturno assume o poder do Cosmos, segundo a Teogonia, de Hesíodo. Gaia/Terra, mãe de Crono, abarrotada pela fecundidade de Céu/Urano, incita que um de seus filhos ponha fim aos abusos do pai, oferecendo-lhes uma foice. Crono a toma para si, assumindo, então, a função castradora. Ele corta os genitais do pai, intervindo no coito entre o Céu e a Terra, e definitivamente os separa. É justamente Crono/Saturno - alegoria do tempo - que distingue o que é divino do que é terreno, o que é imortal do que é humano. Ao dar fim à fertilidade do Céu, Crono toma o poder para si.

Assim sendo, fica mais fácil compreender a clássica representação de Saturno sempre como um homem de idade avançada, como se na sua própria imagem estivesse contida a ideia limitada da vida, como se as marcas do tempo fossem um memorando para que nunca mais se repita a mítica tragédia do descontrole prolífico da vida na Terra.


Francisco de Goya

“Saturno devorando um filho” também é o título de uma pintura de Goya, e embora essa não apresente a foice, diante dela vemos a sua monstruosa fome, que o leva a devorar sua prole, para prevenir-se das predições que anunciavam que um de seus filhos o destronaria. Em Metamorfoses, de Ovídio, outra obra clássica, lemos passagens que remetem a esse episódio. Reia, esposa de Crono/Saturno, privada da maternidade pelo marido infanticida, rouba dele um dos filhos, Zeus/Júpiter, deixando-o aos cuidados da ama Almateia, e oferecendo ao marido, no lugar desse filho, pedras envoltas em pano, por ele engolidas. Em sua idade adulta, Zeus/Júpiter recebe de sua consulta à Prudência, uma droga, que o auxilia a obrigar que o pai vomite seus irmãos, ao lado dos quais destitui o governo de Saturno e outros titãs, dando início a uma nova era.


AS ESFERAS CELESTES, O RELÓGIO DA ALMA


Para observar o tempo na Astrologia, podemos pensar nos mapas astrais como relógios. Compartilhamos da imaginação de Cláudio Ptolomeu quando distribuímos os corpos errantes em esferas que se distanciam de nosso ponto de observação terreno, na qual primeiro localizamos a Lua, em seguida Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter, e por fim, na última esfera, Saturno. Há aproximadamente vinte séculos, cada um desses errantes arrastam os valores que lhes foram atribuídos por seus estudiosos. Em razão da proximidade com a vida terrena, à Lua foi designada ao ordinário, a sucessão da vida, dia-a-dia, no qual datamos, feito à maré, nossos altos e baixos, nossas idas e vindas, nossas agendas e seus dramas diários. À Vênus foi designada a beleza, e uma noite de boas condições de observação do céu nos induz a essa mesma antiga ideia: por contraste, seu brilho a destaca de todos os demais corpos, fazendo pelo céu, o mesmo que por aqui o amor. E assim, e por séculos, cada errante alimentou a imaginação dos sonhadores celestes, cujos olhos alcançavam até Saturno, ao qual, então, foi designado o limite, a finitude, a experiência, a lentidão, o tempo em si.

Agora, de outra perspectiva, se nos fizermos acompanhar da ideia platônica da encarnação da alma, podemos imaginar que para alcançar a Terra, a alma atravesse as sete esferas, sob a regência de diferentes deuses, negociando, com cada um deles, partes de sua ânima. E dessa perspectiva a primeira negociação é com Saturno, e ali a alma recebe justamente um limite e é incluída do círculo do tempo, seu primeiro preparo para a experiência terrena. A alma então atravessa todas as esferas, até receber um corpo, atributo que se negocia na esfera lunar, e por isso mesmo temos a Lua associada aos ciclos femininos, às figuras maternais e ao redondo de suas barrigas.

Embora mitologia e astrologia sejam saberes distintos, o valor do mito, ao lado do pensamento astrológico, enriquece a trama: Saturno, nas representações das esferas planetárias, é a primeira e a última, e assim, para habitar o mundo terreno, o tempo de vida e a vida na borda do tempo são assuntos de toda alma encarnada.


OS CICLOS DOS ASTROS E SUAS CONTAS


Data, hora e local de nascimento. Quando recorremos à Astrologia para observar uma natividade, as informações temporais são requisitos essenciais. Fragmentamos o tempo em diversas unidades: anos, meses, horas. Essas unidades estão intimamente orientadas às luzes, Sol e Lua, e aos demais errantes celestes, considerando como os observamos de uma certa geografia, de onde nos localizamos.

Por exemplo, ao se levantar, o Sol incide sobre a janela do meu quarto como se batesse na porta da casa da vida, ao leste do horizonte, de onde sempre nasce e onde estará amanhã de novo, muito proximamente ao mesmo horário no qual se encontrava hoje. E assim eu conto 1 dia, e vejo, aos seus pés, o Sol, fiel como um cão cotidiano. Já 1 ano é o tempo que o Sol leva para retornar exatamente no mesmo lugar na eclíptica, que é o nome da região celeste que ele atravessa. Uma das técnicas astrológicas mais populares respeita esse ciclo, a Revolução ou Retorno Solar, que coincide com a data de nosso aniversário, na qual somamos para o nosso tempo mais 1 ano vivido.

Isso de um astro retornar ao ponto original ocorre com todos demais planetas, mesmo os mais distantes. Júpiter, por exemplo, tem uma revolução a cada 12 anos, e Saturno, ainda mais distante e lento, cobra sua conta aos 28, 29, 30 anos, e configura, o ciclo mais longo que temos nos trânsitos astrológicos, pela perspectiva da astrologia tradicional. Diante de Saturno, só figuramos um lugar entre os mais velhos quando passamos pelo primeiro de seus retornos. E então, quando o cumprimos, ele nos observa da sétima esfera como se fossemos um bebê deixando de engatinhar e aprendendo a ficar de pé, e feito ele, a olhar a vida do alto de seu olhar altivo e analítico, precavido e duradouro.


O RETORNO DE SATURNO


Na simbologia astrológica, Saturno é tido como um planeta frio e seco, ambas qualidades são contrárias às condições de manifestação da vida, cuja proliferação é ofertada pelas qualidades de calor, mas principalmente de umidade. A relação de Saturno com o inverno se dá acima da linha do Equador, berço dos observadores do céu que sistematizam a astrologia ocidental. No hemisfério norte, o início dessa estação acontece no dia do ano em que temos a noite mais longa de todas, o equinócio de inverno. Esse mesmo período concorda com o ingresso do Sol nos primeiros graus do Capricórnio zodiacal, um signo sob a regência de Saturno, seguido de seu par igualmente governado por ele, Aquário.

Tal qual a secura invernal é contrária a proliferação da vida, analogamente Saturno e seus signos nos oferecem condições semelhantes, nas quais preservação, perseverança e resistência são rigorosamente necessárias. E sem que a natureza possa, em tais condições, ofertar seu banquete primaveril, as natividades saturninas ou períodos saturninos de uma natividade submetem a vida a uma série de adversidades, como a escassez, a carência e a deficiência, principalmente dos recursos e temas ligados a essa esfera. O Retorno de Saturno é um desses momentos.


Saturno, Hubble

Para que Saturno volte a transitar pelo mesmo signo que estava em um nascimento, ele leva de 28, 29 ou 30 anos. E quando se atinge essas idades e seus múltiplos, como 56 anos em diante, ou dos 84 anos em diante, a natividade em questão reelabora seus acordos com o tempo, sob as exigências típicas dessa esfera. Diz-se de Saturno que ele governa o chumbo, e como o metal, pesa. Os assuntos que ele governa e sobre os quais se inclina em cada natividade são vivenciados com densidade, como se a gravidade por ali fosse maior, como se a mochila, por suas paragens, pesasse 7 vezes mais. Tais anos são vivenciados como longos períodos de repesagem. É como uma profunda necessidade de reavaliação para qual a vida nos conduz ou obriga através de situações de naturezas distintas. Essas situações podem ser apreendidas em um mapa natal a partir da observação de Saturno.

Em primeiro lugar, se observa o signo e a casa astrológica que ele ocupa. Isto é, um Saturno na casa 7, das alianças e casamentos, pode ser vivenciado nesses termos, e se apresentará de forma distinta para outra natividade, por exemplo, de Saturno na casa 2, cujos assuntos são finanças e sustento. O signo, por sua vez, oferece informações sobre a qualidade da travessia por esses tempos, isto é: um Saturno, frio e seco, em um signo quente como Áries, parece não dispor na mesma paciência para tais reformas como um Saturno em Capricórnio, signo que é frio e seco, como sua própria natureza. A quentura ariana pode indicar urgência no reparo de tais situações, exigir soluções imediatas e improvisadas. Ainda assim o período saturnino exigirá remodulações que sejam estratégicas e se sustentem a longo prazo.

Em segundo lugar, se observa os demais planetas e pontos da carta natal com os quais Saturno estabelece aspectos. Por exemplo, se Saturno se opõe ao Sol, um astro ligado à vitalidade, ânimo, espírito, a oposição questiona os atributos solares, marcando um período de arrefecimento de energia. A atenção a sintomas de apatia, acabrunhamento e desinteresse devem ser maiores. Diferentemente seria o caso de Saturno em trígono ao Meio Céu, respectivo à carreira e realizações. Aí as repesagens, ainda que árduas, possibilitam conduzir a vida profissional a um caminho mais estável visando prosperidade a longo prazo, tomando o tempo como aliado, não inimigo.

Em terceiro lugar, se observa as casas que Saturno rege: Aquário e Capricórnio, por domicílio, e por exaltação, Libra. A exemplo, imaginemos um Saturno em Capricórnio de casa 7, dos relacionamentos. Ao retornar, ele atrairá para a casa 7 os assuntos da Libra. Nesse exemplo, a Libra ocupa a casa 4, referente ao lar e a moradia. Os dois assuntos, casamento e moradia, serão fundidos, confundidos, caminharão juntos, por exemplo, um casal que decide dividir o mesmo teto, ou, em outro caso, uma separação e mudança de lar.

Cada natividade traz a sua singularidade, não só no que se refere à distribuição dos elementos em seu mapa, mas da própria trama da vida e sua história. No entanto, o que é comum a todas elas, ao atravessarem essas idades, é o condensamento do humor, que faz com que o espírito contraditoriamente afunde acima de si mesmo. Em razão de ocupar a última esfera celeste, Saturno pressupõe distanciamento. Nesses períodos, é como se estivéssemos sob o aconselhamento dos velhos e das velhas que seremos em um tempo longínquo, e dessa misteriosa voz distante, ouvíssemos nossas próprias palavras nutridas pela experiência temporal, que são ditas, a depender de cada senhor e senhora, como advertências ranzinzas, enfadonhos sermões ou proféticas anedotas de sabedoria: “véio é seu passado”, nas palavras da minha vó Zely, que já atravessa o seu terceiro retorno de Saturno. Também nesse sentido o retorno de Saturno opera a ideia de controle. As repesagens e seus humores de aprofundamentos avaliativos nos levam a não proliferar a nossa vontade em quaisquer direções, poupando assim recursos vitais que dispomos para fundamentar e edificar os nossos desejos futuros. Assim, nesse processo, nos vemos diante do que criamos ao longo dos anos e, como no mito, precisamos devorar parte de nossas criações. Em nome da prosperidade vindoura, devemos ceifar, isto é, colher os frutos anteriores, preparando a terra para outros cultivos.

Percebam como agora não é difícil de compreender a melancolia atribuída a Saturno, uma vez que ele nos educa para as partidas, e oferece, a cada troca de estação, uma chegada às paragens até então insondadas. Como a própria fase adulta é para a infância uma morte simbólica, a última paragem - da morte mesma -, sempre nos escapará à compreensão. Assim era para os antigos astrólogos, cujo último planeta visível a olho nu, Saturno, resguardava sob o sigilo do mistério o que não dispomos de meios para contabilizar, contar e narrar.


Afresco de Saturno em Pompeia, do Museu Arqueológico de Nápoles

 
 

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