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Fernando Pessoa: o geminiano encoberto

Foto do escritor: Julia GarciaJulia Garcia

O nome de Fernando Pessoa desperta até hoje nos leitores curiosidade e fascínio, isso não se deve apenas à sua poesia excepcional, mas também a todo o contexto particular de sua produção artística, com a criação de heterônimos, o gosto pelo ocultismo e o estudo das astrologia. Pessoa se interessou pela astrologia desde cedo, fez consultas com diversos astrólogos, retificou seu próprio mapa, estudou técnicas preditivas e levantou centenas de mapas à mão. Podemos dizer que a astrologia fez parte da sua vida tanto quanto a poesia - duas linguagens que o geminiano Pessoa abraçou com afinco e dedicação. A influência da astrologia na vida e obra deste poeta é tema que abordei na terceira edição da revista Cazimi, que pode ser adquirida através da Editora Pogo, e também no curso Heterônima Astrológica que está disponível no site da Saturnália - Escola de Astrologia. Mas e o próprio mapa astrológico de Pessoa, o que ele nos revela sobre sua vida e sua arte?


Mapa Astral Fernando Pessoa

Observar um mapa astrológico é observar um recorte do tempo, uma posição específica que nunca voltará a se repetir. Ao iniciar a leitura desse fragmento de tempo, lançamos o primeiro olhar para o horizonte leste onde os astros se levantam, esse é o ponto que chamamos ascendente. No ascendente de Fernando Pessoa ergue-se o signo de Escorpião, signo noturno, fixo, do elemento água e que por associação natural nos provoca medo, fascínio e mistério. Escorpião representa a queda da Lua, signo onde a imaginação sofre de mergulhos profundos, há pouca luz e as noites são longas. Depois de diversas retificações do mapa natal, Pessoa terminou desenhando seu mapa com o ascendente a 2º26’ de Escorpião, no ano de seu nascimento a este graus estava a estrela fixa Princeps, uma estrela da natureza de Mercúrio e Saturno e que confere aos que nascem junto a ela “uma mente sutil, estudiosa, perspicaz e profunda, muitas vezes mentiroso descarado, interessado em assuntos ocultos ou sérios”. Ocultista e fingidor, assim é o destino que a estrela anuncia. Na Casa 1 também está Júpiter, o grande benéfico, o que expande a mente do nativo em um exagero mental capaz de transbordar a si mesmo.


A partir do signo ascendente, buscamos agora o seu regente, o planeta que tem domicílio em Escorpião é Marte, o pequeno maléfico, que encontra-se em Libra na Casa 12. A força e a coragem de Marte bambeiam na balança libriana, o guerreiro celeste está nos campos da sua antítese, um estrangeiro distante de casa. Planetas em exílio expressam sua natureza de forma incomum, deslocados do habitual. A imagem é mesmo a de um soldado que veste-se com os trajes da deusa do amor, sua batalha é através das artes venusianas, tão avessas ao feitio bilioso próprio do espírito marciano. Não apenas Marte se encontra no signo de Vênus como ele também a observa por um trígono estreito, por isso ele a ama e deseja. 


Além de estar no signo de seu exílio, Marte também está posicionado na Casa 12 do mapa, casa que representa as prisões, os exílios e as angústias. O duplo testemunho reforça o isolamento e a sensação de desterro enfrentada pelo planeta guerreiro, o que se pode associar aos eventos da própria natividade (morar no estrangeiro) mas também a própria sensação de ser estrangeiro presente em grande parte de sua obra:


Lá fora a vida estua e tem dinheiro.

Eu, aqui, nulo e afastado, fico

O perpétuo estrangeiro

Que nem de sonhar já sou rico. (1)


Marte, o planeta da ação, é também responsável pelos nossos impulsos e nossa coragem. É no escuro da Casa 12 que a coragem de Pessoa trabalha, arredio como o escorpião, oscilando entre angústias e receios, mas sempre mantendo os olhos no objetivo central: Vênus. 


O regente do ascendente também enxerga por trígono o Sol. Sol em Gêmeos dispensa nossas descrições, é duplo, mutável, sanguíneo, veloz nas suas ideias e inconstante nos seus projetos - sem mencionar a evidente comparação entre a ideia de duplo que acompanha esse signo e a capacidade de dissolver a personalidade típica desse poeta. Observemos então um outro ponto importante de sua condição, o Sol está posicionado na casa oito, a fatia do céu que representa o princípio do declínio do dia, dali por diante o Sol só irá cair, diminuir sua luz até esconder-se completamente no horizonte. É a Casa da morte, das angústias, medos, mas também a casa das heranças e de tudo que é oculto, o próprio ocultismo. O Sol, astro responsável pela nossa constância e autoconfiança, esconde-se, guarda ensimesmado as suas certezas em um comício na própria cabeça, não oferece calor suficiente para aquecer as ousadias e prefere velar(2) do que revelar.


Sol nulo dos dias vãos,

Cheios de lida e de calma,

Aquece ao menos as mãos

A quem não entras na alma!

(...)

Senhor, já que a dor é nossa

E a fraqueza que ela tem,

Dá-nos ao menos a força

De a não mostrar a ninguém! (3)


Quando falamos desse Sol escondido na Casa 8 é inevitável não pensar nas características introspectivas de Fernando Pessoa, sua personalidade tímida, seus hábitos solitários e sua obra imensa que crescia no escuro de seu pequeno quarto, trancada em uma velha arca. No entanto, toda dificuldade que o mapa reserva é parte integrante da poesia daquele destino. Pessoa não poderia ser a promessa que foi sem que seu Sol fosse o que tinha que ser: um rei Encoberto.(4) O rei do mapa é o rei que se perde no areal, porque só a intimidade com a Casa 8 é que poderia compor um verso como cadáver adiado que procria.(5) Não há como haver o Desejado se antes não vier o Encoberto. É inegável que os temas mórbidos desta casa resultam na sua personalidade taciturna e em práticas como os estudos de cálculos astrológicos para previsão de morte que o poeta tanto praticou, no entanto, a Casa 8 esconde também um propósito maior: pensar na morte é também pensar para além dela, não era para o tempo de sua própria vida que Pessoa escrevia.


Junto do Sol também está Vênus, astro que representa o amor, a arte e tudo que é belo. Ela é, como já dissemos, o grande desejo do indivíduo, uma vez que Marte repousa no signo dela e a enxerga por trígono. Vênus, no entanto, está duplamente oculta, pela Casa 8 e pela combustão do Sol. Qualquer astro que se aproxima excessivamente do Sol torna-se imediatamente invisível, esconde-se, perde-se em meio a luz. Vênus, deusa do amor e regente da Casa 7 de Pessoa (casa dos relacionamentos) também foge e se esconde entre espinhos e torres que o príncipe Marte em Libra precisa enfrentar. Apesar de sua dupla aflição, Vênus recebe um grande auxílio: está em conjunção (exata! - de grau e minuto) com a estrela fixa Rigel. Rigel é o pé direito do caçador Órion, uma estrela branca de magnitude 1 facilmente encontrada no céu noturno. É uma estrela da natureza de Júpiter e Saturno, confere alta ambição, fama, alta honra e grande visão. Vênus, na condição dessa carta, é como um tesouro muito escondido e difícil de alcançar, mas que quando é atingido compensa todos os esforços empreendidos. 


Através da observação das regências e dos signos que estão na cúspide de cada Casa, percebemos que o signo de Leão encontra-se no Meio-do-Céu do mapa natal de Fernando Pessoa. Este ponto astrológico simboliza a culminação dos astros, é portanto nosso lugar de destaque, o destino público de nossas vidas, nossa vocação. Leão, signo solar do ápice do verão, pede ao céu de Pessoa que reine, que anseie pela grandeza que só a loucura dá, mas Leão é apenas o reino, ele depende da força e da vontade seu rei. O rei de Pessoa é um Sol na Casa 8, preocupado com o tema da morte. Assim, forma-se uma aparente contradição entre o desejo dos luminares: a Lua-rainha carrega a voz épica, o anúncio profético do Supra-Camões,(6) a voz forte dos augúrios do livro Mensagem; enquanto isso, o Sol reforça junto a Marte a voz ensimesmada dos poemas ortônimos, os pensamentos labirínticos e angustiantes do livro do Desassossego, e a própria metáfora do novelo embrulhado para dentro.(7)


É com esse rei encoberto que a Lua sonha. No momento em que Pessoa nasceu a Lua nova brilhava no alto do céu, próxima ao ângulo de culminação. Se o Sol se esconde na Casa 8, a Lua se mostra em força e potência afirmando que o sonho que direciona o leme desse destino. A mesma Lua em Leão que aparece no dia de nascimento de Dom Sebastião, Lua que produz lunáticos, loucos, todos aqueles que sonham uma grandeza maior do que a própria sorte.


Além da Lua, o Meio-do-Céu do mapa também recebe o simbolismo do planeta Saturno, o grande maléfico. Saturno representa os limites, as dificuldades, os pesados navios que atravessam o mar em viagens longas e as doenças melancólicas que acometem os marinheiros quando estão muito tempo longe de casa. Em Leão, Saturno também está em exílio, é um maléfico fora do seu território e, portanto, carrega mais desafios. Com certeza, diante dos seus conhecimentos de astrologia, Saturno era a sombra maior que pairava sobre o Meio-do-Céu da fama que desejava a Lua leonina de Fernando Pessoa. Ele sabia que a condição seria difícil, não por acaso ele se dedicou a entender como mapas de grandes escritores poderiam não revelar nenhuma condição extraordinária, se assim não fosse, talvez sua missão estivesse perdida.


O horóscopo não relata o que há antes do nascimento, nem o que há depois da morte (...) Não pasmemos de que seja apagado e fruste o horóscopo de tal grande artista que foi célebre só depois de morto: o horóscopo indicará qualidades artísticas (em grau que não podemos medir) e indicará obscuridade. Tudo será indicado em abstracto; só uma vidência nossa o poderá concretizar. (8)

Se por um lado Saturno traz peso e dificuldade à expressão do Meio-do-Céu, por outro ele leva ao lugar mais alto os temas que domina. Por sua simbologia essencial, Saturno reforça a importância de uma obra que esteja para além do seu tempo, algo que perdure e atravesse a duração dos anos. 


No seu simbolismo acidental, Saturno é o regente da quarta casa astrológica do mapa, portanto representa a família, os pais e a terra natal. Como Saturno está em exílio, todos esses assuntos passam por dificuldades, deslocamentos, desafios. Aqui poderíamos citar a perda prematura do pai e parentes, mas mais importante ainda é a relação do poeta com sua terra natal. Em muitos momentos, Pessoa dedicou-se a descrever a situação difícil que seu país enfrentava, mas mesmo diante de uma situação hostil a pátria nunca abandona o seu lugar central, figurando entre os pontos mais altos de toda sua obra e poesia. É importante lembrar que Marte, regente do ascendente e significador mais íntimo do sujeito, está no signo que exalta Saturno e na casa onde ele tem sua alegria.


A ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus propósitos, avulta agora em mim; e não penso em fazer arte que não medite fazê-lo para erguer alto o nome português através do que eu consiga realizar. É uma consequência de encarar a sério a arte e a vida. (9)

A Lua sonha com o Sol-encoberto, Marte em exílio observa Vênus, Saturno sombreia a fama e eleva aos céus os assuntos da terra natal. Mas e o escritor? Onde encontramos sua pena? Se estamos diante de um mapa de um poeta é preciso localizar o escritor da história, figura central para dar vazão aos sonhos grandiosos da Lua. O escritor é, evidentemente, Mercúrio, regente do signo de Gêmeos e deus da comunicação, o Ibis(10) de Fernando Pessoa. É através dele que vamos extrair a forma da pena dos poetas, o tom de suas palavras e a forma de seus trabalhos. O Mercúrio de Pessoa tem uma dupla missão: explicar a escrita ortônima ao mesmo tempo que aponta para a existência da heteronímia. Para isso, há três pontos importantes: o signo onde está, a casa onde se encontra e os aspectos que ele estabelece.


Mercúrio está no signo de Câncer e na Casa 9. Câncer é signo da Lua, associado aos sonhos, à noite, tudo que é subjetivo, íntimo, frio e úmido. Fala também da memória, infância e do nosso lar. A casa 9, onde ele habita, é a casa das grandes viagens, ou como diria o astrólogo inglês William Lilly, “casa das viagens por mar”(11). Além disso, nessa casa encontramos os sonhos, os oráculos e as profecias. É desnecessário que eu me alongue a explicar o quanto tudo isso está contido na imagem do livro Mensagem e em diversas outras obras. O tema da infância tantas vezes abordado, a memória que se constrói no agora, as odes marítimas e todas as profecias, além é claro, do próprio estudo e dedicação à astrologia, seu fascínio pela figura de Bandarra e os presságios do sebastianismo, até a própria forma de composição da sua heteronímia. A chegada de Alberto Caeiro, o primeiro dos grandes heterônimos, é descrita por Pessoa como um momento de epifania, uma inspiração recebida de fonte divina. Casa 9 é a casa de Deus, inspira oráculos, sonhos e profecias.


Por último, mas não menos importante, é preciso que o tom da voz do Mercúrio seja de alguma forma tocado pela poesia, sem ela os anúncios do oráculos perdem a capacidade curativa de comover. Mercúrio está a 17º de Câncer, enquanto Vênus (a portadora da beleza) está a 15º do signo de Gêmeos, estão em graus quase perfeitos de uma conjunção por antíscia. Antíscias são pontos do zodíaco irmãos em quantidade de luz, por isso, guardam uma relação íntima como uma imagem e seu reflexo no espelho (leia mais sobre antíscia aqui). Se dois planetas estão em antíscia, eles estão em conjunção, misturando seus temas e suas vozes. Mercúrio e Vênus encontram-se unidos, misturando a beleza à pena da mente, acrescentando poesia ao tom da profecia. Vênus vai lapidar a pena do profeta para que ele seja, acima de tudo, poeta.


É este o texto que os céus escreveram para o destino de Fernando Pessoa. A partir dos elementos de seu horóscopo natal, conseguimos localizar os elementos principais da poesia assinada pelo próprio Pessoa, mas a partir do Mercúrio na Casa 9 também é possível vislumbrar a sua capacidade de transpersonalização, o aparecimento do mestre Caeiro e a criação dos outros heterônimos que dali viriam, todos com seus respectivos mapas astrológicos, compondo o trabalho alquímico, a Grande Obra de uma vida inteira. Este é, portanto, um mapa que se desdobra em outros mapas, e uma vida que se desdobra em muitas. Como o mito, a astrologia é o "nada que é tudo" - o movimento dos astros não é a causa material por trás de nenhum acontecimento terrestre, no entanto, seu simbolismo é capaz de penetrar na realidade e fecundá-la, gerando destinos fabulosos como os de Fernando Pessoa, que além de poeta também era tradutor de estrelas (e não seria tudo, no fim, a mesma coisa?)


Fernando Pessoa astrologia

Para saber mais sobre Fernando Pessoa & astrologia: Revista Cazimi - 3ª edição


Referências

(1) Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. Poema sem título.

(2) Parte menos conhecida de sua obra, Pessoa também escreveu peças dramáticas em um estilo que nomeou como "Teatro estático". A mais famosas dessas peças, chamada "O Marinheiro", tem como personagens três "veladeiras".

(3) Poema sem título, 1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.

(4) D. Sebastião, o rei português que desapareceu lutando no Marrocos, era conhecido como "O Desejado" e o "O Encoberto". Há diversas anotações de Pessoa onde ele insinua uma relação entre seu próprio nascimento e o retorno mítico de D. Sebastião.

(5) Quinta: D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL, Mensagem

(6) A primeira publicação de Fernando Pessoa foi um artigo de crítica literária publicado na revista "A Águia" onde o autor anuncia que em breve chegaria a figura de um Supra-Camões capaz de superar e deslocar a importância de Camões dentro da poesia portuguesa.

(7) Em "Notas para a recordação de meu mestre Caeiro", Álvaro de Campos declara sobre Fernando Pessoa: "Fernando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro."

(8) Fragmento do «Tratado de Astrologia» assinado pelo heterônimo Raphael Baldaya

(9) Carta a Armando Côrtes-Rodrigues - 19 Jan. 1915

(10) A ave Ibis é associada a Thoth, deus egípcio da escrita, magia e conhecimento, que muitas vezes é sincretizado com Hermes/Mercúrio. Ibis é um tema recorrente para Fernando Pessoa, um de seus empreendimentos que não foi adiante era uma gráfica com este nome e também era como "Ibis" que ele assinava as cartas para sua namorada Ofélia.

(11) Astrologia Cristã, William Lilly, século XVII

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